Um ornitorrinco no contencioso administrativo


O ornitorrinco foi descoberto pelos colonizadores europeus na Austrália em 1798. As características atípicas do ornitorrinco fizeram com que o primeiro espécime empalhado levado para a Inglaterra fosse considerado pela comunidade científica como um embuste. Na altura, o zoólogo Robert Knox pôs a hipótese de ele ter sido produzido por um taxidermista asiático, havendo também quem suspeitasse de que alguém havia costurado um bico de pato sobre o corpo de um animal semelhante ao castor. Só em 2008 foi sequenciado o genoma do ornitorrinco, tendo-se verificado que ele compartilha os genes com os répteis e com as aves.  
Um contrato é um instrumento de regulamentação de interesses dos contraentes, muitas vezes contrapostos, que se conciliam pela solução constante do enunciado negocial.
Esta solução reside no encontro de vontades das partes outorgantes que se vinculam ao seu cumprimento num exercício de liberdade
Apesar da execução do contrato poder vir a interferir com direitos e interesses de terceiros, o objeto da regulamentação cinge-se a uma relação jurídica estabelecida entre as partes.
A Administração Pública pode ser uma das partes de um contrato, embora isso não signifique que ela se vincule em termos idênticos aos particulares, dando lugar aos chamados contratos administrativos, como um dos meios de exercício da actividade administrativa, os quais se encontram sujeitos a regras próprias constantes do Código dos Contratos Públicos.
A dedução de pretensões nos tribunais administrativos relativos à validade, total ou parcial de contratos administrativos pode ser efetuada:
a) Pelas partes na relação contratual; 
b) Pelo Ministério Público; 
c) Por quem tenha sido prejudicado pelo facto de não ter sido adotado o procedimento pré-contratual legalmente exigido; 
d) Por quem tenha impugnado um ato administrativo relativo ao respetivo procedimento e alegue que a invalidade decorre das ilegalidades cometidas no âmbito desse procedimento; 
e) Por quem, tendo participado no procedimento que precedeu a celebração do contrato, alegue que o clausulado não corresponde aos termos da adjudicação; 
f) Por quem alegue que o clausulado do contrato não corresponde aos termos inicialmente estabelecidos e que justificadamente o tinham levado a não participar no procedimento pré-contratual, embora preenchesse os requisitos necessários para o efeito; 
g) Pelas pessoas singulares ou coletivas titulares ou defensoras de direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos aos quais a execução do contrato cause ou possa causar prejuízos; 
h) Pelas pessoas e entidades nos termos do n.º 2 do artigo 9.º (artigo 77.º - A, n.º 1, do CPTA). 
Já a anulabilidade de quaisquer contratos por falta e vícios da vontade só pode ser arguida pelas pessoas em cujo interesse a lei a estabelece (artigo 77-A, n.º 2, do CPTA). 
Quanto aos pedidos relativos à execução de contratos, os mesmos podem ser podem ser formulados:
a) Pelas partes na relação contratual; 
b) Pelas pessoas singulares e coletivas portadoras ou defensoras de direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos em função dos quais as cláusulas contratuais tenham sido estabelecidas; 
c) Pelo Ministério Público; 
d) Pelas pessoas e entidades nos termos do n.º 2 do artigo 9.º; 
e) Por quem tenha sido preterido no procedimento que precedeu a celebração do contrato (artigo 77.ª-A, n.º 3, do CPTA).
O disposto no transcrito artigo 77.º-A do CPTA revela que a Reforma do Contencioso Administrativo promoveu o alargamento das pessoas com legitimidade para deduzirem nos tribunais administrativos pretensões, visando pôr em causa a validade de contratos administrativos ou relativas à sua execução, designadamente pedindo o seu cumprimento ou uma indemnização pelo seu incumprimento.
Assim, essa legitimidade ativa foi estendida aos chamados terceiros interessados, o que abrange os afetados pela execução do contrato ou por vícios do respetivo procedimento pré-contratual, no caso da dedução de pedido de invalidade, e os titulares de interesses protegidos pelo texto contratual ou por quem tenha sido preterido no procedimento que precedeu a celebração do contrato, nas ações tendo por tema a execução dos contratos. Estamos, pois, perante a conceção de uma relação jurídica alargada que abrange não só os participantes no desenho dos termos do contrato, mas todos aqueles que possam ser afetados pelas disposições contratuais. A legitimidade é, pois, conferida a todos os interessados na regulamentação contratualmente fixada, sejam ou não participantes nessa fixação de conteúdo.
Mas, além de ter sido conferida legitimidade para a propositura destas ações a estes terceiros interessados, a lei conferiu igual possibilidade não só ao Ministério Público para defesa da legalidade e dos interesses públicos, mas também aos sujeitos referidos no n.º 2, do artigo 9.º do CPTA, ou seja qualquer pessoa, bem como às associações e fundações defensoras de interesses constitucionalmente protegidos, mesmo que não possuam um interesse pessoal na demanda. Esta remissão para o n.º 2, do artigo 9.º deve entender-se como abrangendo a exigência dos pressupostos objetivos da permitida intervenção processual, ou seja, a legitimidade é reconhecida a tais pessoas e entidades, mas apenas para a defesa de interesses difusos relativos a valores e bens constitucionalmente protegidos como a saúde pública, o ambiente, o ordenamento do território, a qualidade de vida, e o património cultural. Abriram-se, pois, as portas a uma ação popular no âmbito das ações relativas à validade e à execução dos contratos administrativos.  
Se a abertura desta ações ao impulso do ator público se compreende e aceita, face à necessidade omnipresente de defesa da legalidade e do interesse público, já se afigura excessiva e injustificada a concessão de igual legitimidade ao ator popular para defesa de interesses difusos, permitindo-se que qualquer pessoa ou organização, independentemente de qualquer lesão específica da sua esfera jurídica, intervenha em tema de validade ou execução de um contrato, em nome de interesses e valores gerais da coletividade.
Se a concessão deste papel ao ator popular é exigível perante atos unilaterais da Administração, otimizando a garantia da tutela jurisdicional consagrada no artigo 268.º, n.º 4, da Constituição, perde razão no âmbito das relações jurídicas administrativas construídas por acordo de vontade das partes em que a intromissão de alguém que não é suscetível de ser minimamente afetado pelas disposições contratuais se revela uma intrusão manifestamente abusiva.
Esta extensão da legitimidade ativa nos litígios respeitantes à validade e execução dos contratos administrativos revela-se contraditória com a natureza da relação contratual controvertida, uma vez que lhe confere caraterísticas “erga omnes”.
Caracterizando-se as relações contratuais pelos seus efeitos relativos, esta sua vulnerabilidade a toda a comunidade determina que os direitos e deveres resultantes dessa relação são simultaneamente relativos e absolutos.
Daí poder dizer-se que esta construção jurídica contraditória se equipara ao fenómeno ornitorrinco descrito no início deste texto.
E, não estando o ornitorrinco em perigo iminente de extinção, também não se advinha que esta extensão excessiva da legitimidade desapareça do contencioso contratual administrativo nos tempos mais próximos, a não ser que a sua utilização ponha a nu o absurdo da sua previsão. 

Pedro Mariano 140114033


Comentários

Mensagens populares