1 (ACÓRDÃO) + 1 (RECURSO HIERÁRQUICO) + 1 (GNR) = π(ESSOA)? (1º PARTE)

1 (ACÓRDÃO) + 1 (RECURSO HIERÁRQUICO) + 1 (GNR) = π(ESSOA)?

Motto:
- “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”
Fernando Pessoa, “Mar Português”, em Mensagem.

Quando todos pensávamos que os traumas de infância do Contencioso Administrativo haviam sido enterrados por sob as vagas renovadoras da Reforma de 2004, eis que surge, a 18 de novembro de 2010, a confrangedora decisão do TCA do Sul (Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, de 18.11.2010, Processo 06326/10, Relator: Rui Pereira - http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/b25f66d00538bb4c802577e40053f51f?OpenDocument), para nos relembrar que a Reforma, qual delicado bonsai, construi-se todos os dias, passo a passo.
De facto, a desconstrução da lógica iluminista do juiz-administrador – o famoso pecado original – do Contencioso Administrativo, requer um profundo exercício de ataraxia, asceticismo e vera luta estoica, exigente até para um Zenão de Cítio dos tempos modernos. Contudo, tal como todas as duras demandas, o deleite do fruto suplanta, a largos traços, o pesar da demora.
Debrucemo-nos sobre a peça.
Sucintamente, estamos perante um caso em que um militar da GNR, Autor nesta ação, foi alvo de uma pena disciplinar de 5 dias de detenção, no âmbito de um processo disciplinar. Após a sua condenação, o Autor recorreu hierarquicamente da decisão punitiva para o Comandante-Geral da GNR que, por despacho, negou provimento ao recurso hierárquico. Indignado por ver a sua demanda improcedente, o militar da GNR intenta, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, uma Acção Administrativa Especial contra o Comandante-Geral da GNR, na qual peticionou que fosse decretada a nulidade ou anulado o acto administrativo que negou provimento ao recurso hierárquico interposto do acto que o puniu disciplinarmente. Por despacho saneador, o TAF julgou procedente a exceção de inimpugnabilidade do acto em causa e absolveu o Comandante-Geral da instância. Duplamente inconformado com uma segunda decisão contrária aos seus direitos e legítimos interesses, o autor interpôs recurso jurisdicional para o TCA do Sul, tendo na alegação apresentada formulado as seguintes conclusões (passando a citar):

“1. O recorrente foi punido com cinco dias de suspensão, que foi colocado a cumprir três dias depois da interposição do recurso para o senhor Comandante-Geral.
2. Trata-se, pois, na decisão deste de uma decisão lesiva dos seus direitos e interesses e tão lesiva que já cumprida.
3. Não é, pois, no caso concreto, necessário o recurso hierárquico para o acesso à via contenciosa.
4. Porquanto o acto questionado teve eficácia externa e teve-a tanto que a decisão até já foi efetivamente cumprida, com as inerentes consequências, na vida profissional e pessoal do recorrente.
5. Ao ter entendido de outra forma a decisão recorrida violou os artigos 2º, 3º e 51º, nº 1, todos do CPTA.
6. Deve por isso ser revogada, considerando-se improcedente a exceção invocada e ordenando-se que se conheça do pedido.”

Este processo concerne ao regime dos pressupostos processuais e à velha questão dogmática relativa ao recurso hierárquico necessário versus facultativo.
À partida, conhecendo nós a letra do atual artigo 51º nº1 CPTA, em conjugação com o regime do 268º nº4 CRP, sabemos que são impugnáveis todas as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos (e lesivos!) numa situação individual e concreta, ainda que não ponham termos a um procedimento. Este regime adotado pelo legislador de 2004 parece afastar, por absoluto, a clássica figura do recurso hierárquico necessário, banhando o nosso ordenamento nas águas plácidas do recurso hierárquico facultativo.
Esta seria, na verdade, a catarse apropriada do regime vigente. Catarse essa que, inclusive, se aplicaria ao caso concreto – veja-se: o Autor é alvo de uma decisão administrativa disciplinar, que produz na sua pessoa efeitos externos e imediatamente lesivos (5 dias de detenção). Todos os requisitos estão preenchidos.
Sendo assim, porque é que se levantou toda esta problemática? Esta situação relacionou-se com a letra de uma disposição legal especial, constante da Lei n.º 149/99, de 1 de setembro, que passarei a transpor (sublinhado meu):
Artigo 120.º
Recurso da decisão do comandante-geral
Da decisão do comandante-geral cabe recurso hierárquico necessário para o Ministro da Administração Interna, a interpor no prazo de 10 dias a contar da data da respetiva notificação.

Mesmo assim, o verdadeiro alcance desta problemática poderá não ficar verdadeiramente claro. Compreendemos que a Reforma de 2004 revigorou a lógica iluminista do recurso hierárquico necessário e da tripla definitividade, transformando-a numa via puramente facultativa, realizando assim, decididamente, os desígnios constitucionais de tutela jurisdicional plena e efetiva.
Todavia, partindo apenas dos conhecimentos elementares adquiridos em Introdução ao Estudo do Direito (nomeadamente, no artigo 7º nº3 do Código Civil de 1967 – regras que, na verdade, justificam o seu positivismo por meros imperativos de clarividência, posto que constituem regras da Constituição material, se não, verdadeiramente, supraconstitucionais ou de direito cogente), facilmente seremos levados a pensar que a disposição geral não revoga a especial (clássico princípio da generalidade versus especialidade).
Assim sendo, parece-nos logico-dedutivo que, ainda que o princípio geral em vigor desde 2004 seja a proibição do recurso hierárquico como pressuposto processual da impugnação judicial de uma decisão jurídico-administrativa, o legislador estaria na plena disponibilidade de consagrar regras especiais que o impusessem.
Tão simples quanto isto, não é verdade?


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