Os modelos processuais(ou operativos)mais marcantes de justiça administrativa

No continente europeu, embora com variantes, predominou um modelo tradicional, conhecido como "modelo francês", que se desenvolveu em França a partir da Revolução de 1789, sobretudo através da jurisprudência do Conseil d' État, e que, em termos simplificados ou estilizados, apresenta as seguintes características típicas:

       a) Exige-se com base numa ideia radical de separação de poderes, um contencioso especial para actuação de direito público da Administração, subtraído à lógica própria dos tribunais judiciais e atribuído a "tribunais administrativos" - que não são, em regra, verdadeiros tribunais, mas órgãos administrativos independentes ou "quase-tribunais", embora actuando segundo um processo jurisdicionalizado;

       b) No âmbito do contencioso administrativo, prescreve_se a existência de um domínio nuclear, de contencioso administrativo comum("por natureza" ou "por definição"), constituido pelo recurso de anulação de decisões administrativas,  o recours pour excès de pouvoir - um recurso que, apesar da não judicializaçâo, tende a ser de mera legalidade (impugnam-se os actos com base em "excesso de poder" ou "violação da lei"), sucessivo (pressupõe uma decisão administrativa prévia, real ou, em situações de omissão, ficcionada como acto "tácito" ou silente) e limitado (por um lado, porque não são plenos os poderes de cognição e de decisão do juiz, que só pode anular o acto; por outro lado, porque há dificuldades em obter a execução das sentenças contra a Administração).

       A este contencioso "natural" a lei pode juntar, a título de complemento, segundo um princípio enumerativo, outros meios de acção em tribunal ("contencioso por atribuição"), designadamente em matéria de contratos administrativos e de responsabilidade civil, um contencioso dito de "plena jurisdição", mas onde, apesar disso, há certos limites, como a sujeição ao princípio da decisão administrativa prévia e a impossibilidade de injunções  directas à Administração;

       c)Fixa-se um regime processual de natureza fundamentalmente objectivista, considerando-se o recurso de anulação  como "um conflito a propósito de um acto" (individual ou normativo), destinado em primeira linha a fiscalizar a legalidade do exercício autoritário de poderes administrativo, em que os recorrentes particulares desempenham a função de auxiliares da legalidade, porque (desde que) interessados no resultado.

       No entanto, em face da evolução do direito administrativo e, em certo momento, por influência das concepções anglo-saxónicas, emergem novas intenções, associadas à ideia de uma "protecção judicial plena e efectiva" dos administrados, que propugnam por um modelo predominantemente subjectivista - que se pode designar por "modelo alemão", porque foi instituído depois da II Guerra Mundial na Alemanha, onde tinha raízes históricas sobretudo no "modelo sul-alemão", contraposto ao "modelo prussiano", de cariz mais objectivista.

       Procura-se, deste modo, a par de uma densificação substancial e procedimental da fiscalização judicial da actividade administrativa, designadamente no que respeita à limitação dos poderes dicricionários:

       a) A jurisdicionalização total (material, processual e orgânica) do contencioso administrativo, isto é, a instituição de uma verdadeira "justiça administrativa", dentro da lógica própria comum a todos os tribunais, embora em regra com separação orgânica da jurisdição comum;

       b) O desenvolvimento dos meios de acção de jurisdição plena (acções em que o juiz dispõe de poderes de decisão diversificados e efectivos, anulatórios, declarativos, condenatórios, cautelares), quando estejam em causa e na medida em que sejam lesados direitos (posições jurídicas subjectivas) dos cidadãos, a fim de se lhes garantir uma protecção judicial efectiva em todas as situações, independentemente da prática de actos administrativos - deixando de se reconhecer o princípio da enumeração e o recurso contencioso de anulação como núcleo essencial do sistema;

       c) Em geral, a acentuação dos aspectos subjectivistas no processo administrativo, enquanto processo de partes, por exemplo, no que respeita a legitimidade, aos poderes e deveres processuais das partes, ao uso dos meios cautelares, aos efeitos da sentença, aos limites do caso julgado, ou à execução das decisões judiciais.

       A realidade mostra que, nos países da Europa continental, dotados de sistemas de administração executiva, os modelos mais recentes de justiça administrativa oscilam ente os que são mistos, com características objectivistas e subjectivistas, e os que apresentam características predominantemente subjectivistas, estando ultrapassados os modelos objectivistas puros.

       A evolução da generalidade dos sistemas aponta claramente no sentido de uma subjectivização da justiça administrativa, tendo em conta comprovada insuficiência dos modelos objectivistas clássicos para assegurar uma protecção judicial efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, cuja importância se desenvolveu exponencialmente, acompanhando o alargamento da intervenção administrativa a todas as esferas da vida social.

       Não pode ignorar-se, porém, que cada um dos modelos tem as suas vantagens, e que, se ninguém contesta que o modelo subjectivista  fornece uma protecção mais intensa aos administrados que sejam titulares de direitos (de posições jurídicas subjectivas) perante a Administração, tem de se reconhecer igualmente que o modelo objectivista oferece garantias mais amplas de defesa da legalidade (e, por consequência, também dos interesses dos particulares, sobretudo quando se trate de interesses difusos ou largamente partilhados), especialmente em extensão, na medida em que tende a alargar a legitimidade para o acesso aos tribunais, seja contra actos individuais, seja contra normas, tanto na acção particular(artigos 62º e 85º do CPTA) como, sobretudo, na acção colectiva, na acção pública e na acção popular(artigos 9º, nº 2 e 85º do CPTA).

       De facto, não podemos esquecer, por um lado, que a finalidade da justiça administrativa há-de assegurar a juridicidade da actividade administrativa e que esta não se reduz à protecção jurídica dos direitos e interesses dos particulares que se dirigem aos tribunais, inclui também, senão principalmente, a garantia da prossecução do interesse público e de diversos interesses comunitários, bem como interesses individuais de outros particulares. Além de que, sendo a actuação administrativa muitas vezes favorável aos particulares, há que acautelar o interesse público contra a concessão de vantagens ilegais ou ilegítimas, designadamente quando resultem de conluio entre os titulares dos órgãos e os interessados.

       Por outro lado, tem de se reconhecer que, mesmo do ponto de vista dos direitos e interesses dos privados, o modelo objectivista também apresenta alguns aspectos vantajosos, até porque a consideração da Administração como poder não é apenas fonte de potenciais privilégios, significa igualmente, a existência de especiais deveres ou limitações, que resulta em favor dos administrados (por exemplo, a propósito do ónus da prova ou do direito de recurso de decisões  judiciais).

       E nem sequer se pode afirmar, numa perspectiva ferroviária da história, que o objectivismo pertence ao passado e que o subjectivismo representa o futuro: a necessidade de asseverar os direitos individuais contra a Administração não pode fazer esquecer as realidades actuais da extensa difusão de utilidades e da intensa intercomunicação de solidariedades, que geram situações de grande complexidade de interesses, públicos e privados, e apontam para uma nova legalidade social, exigindo uma reacção efectiva contra normas lesivas do interesse público, bem como mecanismos institucionais, colectivos e comunitários para a sua realização. Por isso mesmo, nos países do modelo alemão, sempre existiu  e se nota hoje, a vários propósitos, alguma pressão no sentido da acentuação das dimensões objectivistas do sistema.

       Nesses termos, talvez a opção mais adequada para o legislador seja uma construção normativa que combine, sem preconceitos, aspectos de ambos os modelos, aproveitando, na medida do possível, as vantagens cada um.


      

        Bibliografia: JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, 14ª ed., p. 17-22; MARCELO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, II, 10ª ed., p. 1274-1277; VASCO PEREIRA DA SILVA, Para um Contencioso Administrativo dos Particulares, 1989, p. 264-275, IDEM, O Contencioso no divã da psicanálise, 2005, Capítulo I.

        Bil. fac.:RUI MACHETE, Contencioso Administrativo, in DJAP, II, 1972, p. 683 e ss.

   

        Cesário André Reis dos Santos - 140113504

 

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