O contencioso dos contratos



O Contencioso dos Contratos
 

A questão do contrato teve uma longa e traumática história no quadro do Direito Administrativo, porque à volta da teoria da contratação pública surgiram construções esquizofrénicas que mostraram contradições quanto ao modo de conceber a contratação no domínio público. O Contencioso Administrativo, foi, no quadro do Direito Português, um privilégio de foro para a Administração Pública. O que se procurou fazer foi criar um órgão administrativo de fiscalização que protegesse os seus interesses. Inicialmente, esta realidade protegia apenas a Administração Pública no domínio dos atos administrativos. Nos finais do século XIX, existiram outras intervenções administrativas, que pela sua importância, pelos capitais envolvidos e pela necessidade de serem realizados no quadro da justiça administrativa, protegiam a própria Administração Pública quando ela celebrava contratos. A maior parte destes contratos diziam respeito à iluminação das cidades. Ainda em meados do séc XIX, a doutrina francesa começou por teorizar distinções esquizofrénicas entre os contratos administrativos sujeitos ao controlo dos tribunais administrativos e os contratos privados da Administração Pública regulados pelo Código Civil e controlados pelo juiz comum. De acordo com a posição de Otto Mayer, negava-se a possibilidade da administração poder contratar, não fazendo sentido falar em contratos administrativos como contratos especiais. Sendo a Administração uma figura autoritária, não fazia sentido que esta pudesse utilizar instrumentos de índole bilateral, assente num acordo entre esta e os particulares. De acordo com o Professor Sérvulo Correia, existiam contratos com objeto passível de ato administrativo e esses contratos eram substituídos por atos administrativos. Era algo que correspondia a uma lógica de exercício de poderes públicos. Existia aqui uma realidade que se foi cristalizando, do ponto de vista jurídico, mesmo se fosse difícil encontrar um critério para estes contratos, a doutrina identificava alguns critérios como o de poderes de autoridade, cláusulas exorbitantes, critério do ambiente de direito público, entre outros. Esta realidade demonstrava ser contraditória pois haver um contrato que fosse simultaneamente bilateral, mas que no fundo era uma forma unilateral de exercício da função administrativa. Era bilateral porque havia acordo de vontades e unilateral porque por força do contrato o particular ficava vinculado a esse poder público. Por outro lado, a partir do momento em que a realidade administrativa se desenvolve, o que era visto com desconfiança, que era a atividade contratual da Administração, tal vai se tornar normal, e no estado social e pós social, o estado vai fazer com que a Administração Pública atue de forma bilateral.

Nos anos 80, a doutrina em Portugal começou por desenvolver que os contratos administrativos não eram assim tão diferentes dos restantes contratos pois as causas dos contratos resultavam do acordo das partes ou da lei. E os contratos privados não eram assim tão privados pois resultavam de procedimentos do exercício da função administrativa. A Professora Maria João Estorninho entedia que esta figura não fazia qualquer sentido pois era necessário criar um regime jurídico uniforme para toda a Administração Pública, independentemente dessa categorização em público e em privado, era necessário criar um regime que tivesse em conta os objetivos da Administração Pública, que permitisse a prossecução do fins públicos, que permitisse regras de atuação, o controlo da Administração Pública dessa realidade contratual e da gestão dos dinheiros públicos. Esta posição foi defendida, na altura, pelos professores Vasco Pereira da Silva, André Salgado Matos, Marcelo Rebelo de Sousa e João Caupers que embora não tenha sido decisiva para mudar o rumo dos acontecimentos, serviu para abrir as hostilidades. Ainda nos anos 80, a União Europeia estabeleceu um regime comum no âmbito da contratação Pública. Houve uma preocupação em lançar as bases de um regime comum da contratação pública que foi abandonando as distinções francesas entre contrato administrativo e contrato de direito privado. Surgiu um novo tipo de contrato – o contrato público – todos os que são relevantes para o exercício da função administrativa. Surgem diretivas relativas à matéria em que em determinados sectores como a água e a energia, se estabeleceram que a contratação nesses domínios seria uma contratação pública, independentemente das entidades que nela interviessem. O contrato público corresponde ao exercício da função administrativa, que não cabe nas regras da distinção esquizofrénico e estabelece as regras comuns no quadro da atuação administrativa. Este regime comum vai ser, inicialmente, apenas em matéria procedimental e, nos anos 90, a União Europeia criou um mecanismo processual urgente em matéria de contratos públicos, e em resultado da transposição de diretivas comunitárias, surgiu um regime jurídico destinado ao procedimento pré-contratual que por apresentar sinais de deficiência, violava as próprias diretivas.

Após a reforma de 2004, por um lado, o código da contratação pública estabelecia um âmbito de aplicação que abrangia todos os contratos celebrados pela Administração Pública que correspondia a um direito de toda a contratação pública e que relevava para a satisfação das necessidades coletivas, mesmo existindo contratos diferentes. Por outro lado, o mesmo código criou regimes especiais para certos contratos e excluiu do universo da contratação pública contratos que deveriam ter sido incluídos. Surgiram isenções e exceções que não faziam sentido. E a esses mesmo contratos, o legislador decidiu atribuir-lhes o nome de administrativos, mantendo o nome com toda a carga histórica que vinha do passado. Portanto, em resultado de todas estas movimentações, hoje em dia, todos os autores que criticavam a posição esquizofrénico entre contratos administrativos e privados, encontram na legislação europeia e na sua transposição, um reforço da sua posição. O ETAF inclui no universo dos tribunais administrativos todos os contratos em que intervida a Administração Pública, tendo superado esta distinção, o próprio estatuto nem sequer utiliza a expressão de contratos administrativos. O legislador tinha criado, no âmbito do CPTA, regras que alargavam o universo dos contratos, e abrangia o universo da contratação publica.

Nos termos do artigo 4º/1 do ETAF, pertencem ao âmbito de jurisdição administrativa a apreciação dos litígios relativos a contratos administrativos, conforme delimitado pelos artigos 1º/6, 3º e 8º do CCP.Em matéria de contratos públicos, o Contencioso Administrativo é mais amplo do que a própria categoria de contratos administrativos. São utilizados diversos critérios na delimitação da jurisdição administrativa em matéria contratual, designadamente: o critério do contrato administrativo, presente no artigo 4º/1, alínea f) do ETAF referente a contratos com objeto passível de ato administrativo ou relativos ao exercício de poderes públicos; contratos cujo regime substantivo das relações entre as partes seja regulado total ou parcialmente por normas de Direito Administrativo, designadamente os contratos administrativos típicos e os tipos contratuais previstos no Título II da Parte III do CCP e contratos que atribuam direitos especiais sobre coisas públicas ou exercício de funções dos órgãos do contraente público ao contraente privado; contratos aos quais as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de Direito Administrativo, sendo uma das partes um contraente público ou concessionário (contratos administrativos atípicos com objeto passível de contrato de direito privado); o critério do contrato público (artigo 4º/1, alínea e) do ETAF), referente a contratos submetidos a um procedimento pré-contratual de direito público e, portanto, a regras de contratação pública e, por último, o critério da invalidade consequente ou derivada (artigo 4º/1, alínea b), 2ª parte do ETAF) que veio permitir casos de cumulação de pedidos referentes ao mesmo contrato.

O legislador em 2015, do CPA e do CPTA introduziu algumas restrições às normas de procedimento e de Contencioso que sem ter grande alteração, manifestavam uma posição doutrinária que era contrária ao afastamento da esquizofrenia no sentido de no CPA, o código que regulava os contratos administrativos, deixou de ter em resultado das regras do código da contratação pública, o legislador estabeleceu os regimes dos artigos 200º, 201º e 202º que regulam os contratos ditos administrativos e os contratos privados que têm o regime da contratação pública, algo que hoje não faz qualquer sentido uma vez que existe uma unificação dos contratos. O segundo caso refere-se ao artigo 4º do ETAF que repescou a noção de contrato administrativo e para além destes, os códigos regulados pela contratação pública estão também sujeitos ao regime aqui presente. Para ultrapassar estas ideias, a União Europeia estabeleceu regas exigentes para todos os contratos no exercício da função administrativa, e do ponto de vista das diretivas europeias, o alargamento a contratos que em Portugal eram considerados administrativos, mas que do ponto de vista europeu, não estavam incluídos por razões políticas, como por exemplo as concessões, hoje incluídas nas diretivas europeias.

A transposição desta diretiva teve consequências no sistema jurídico português no sentido que auxiliou na realização dos fins do Estado, principalmente no combate à corrupção, do ponto de vista da concorrência. Esta mudança substantiva teve efeitos a nível processual no sentido que houve um alargamento da legitimidade processual. As diretivas proporcionaram ainda uma uniformização do regime jurídico ao revolucionarem e afastarem normas no sistema jurídico português por serem inadequadas, como por exemplo a escolha do co-contratante: esta é uma escolha que a administração pública faz e é determinada por critérios e em que o dominante é o critério do preço. Embora o artigo 4º do ETAF seja uma versão restritiva, os outros contratos regulados pelo código de contratação pública já consagravam uma versão mais ampla.

O legislador em 2015 pôs termo à ação administrativa comum e estabeleceu regras em matéria contratual que se referem à legitimidade e ao prazo. Um dos problemas essenciais, no âmbito do contencioso dos contratos era o de reduzir a legitimidade dos intervenientes no processo..Esta posição foi muito contestada uma vez que se estava perante um contrato, que tem que ver com a realização de um fim público, e por isso todos os que são afetados pelo menos devem gozar de legitimidade no sentido de alargar o âmbito do contrato a todos aqueles que foram afetados. Era previsto permitir que todos aqueles que tinham participado no procedimento e os que poderiam ter participado e não o fizeram, em razão do concurso, gozassem também de legitimidade, no sentido de permitir o alargamento para todos aqueles com interesse relevante acerca da realidade do contrato.

Antes da reforma de 2004, o Professor Vasco Pereira da Silva, propunha que, quando se fizesse referência às partes, está-se a referir a uma relação contratual de direito público, relacionada com o exercício da função administrativa, que poderá ser multilateral, em que os particulares poderiam participar no contrato e no procedimento, pudessem intervir no controlo da validade do próprio contrato. Introduzindo esta ideia da relação jurídica multilateral, devia-se ter em conta este alargamento mesmo quando a lei tinha um sentido restrito. O legislador acabou por intervir produzindo um alargamento dos sujeitos que em resultado da participação do quadro da relação jurídica anterior, gozam de uma legitimidade para intervir e que estejam em condições de discutir essas mesmas cláusulas, depois de elaboradas. A par deste alargamento, há a consagração da ação pública e popular, que apresentam contornos excessivos. No artigo 77-A do CPTA, destingiu, no nº2 a questão da legitimidade que tem que ver com aqueles que intervieram na relação administrativa.prévia à relação processual. A questão da validade interessa àqueles que são partes no contrato, e á aqueles que foram partes no contrato anterior..

Relativamente aos sujeitos processuais, existem normas especiais, que regulam a legitimidade para intervir neste tipo de ação. Assim, nos termos do artigo 77 A do CPTA as partes da relação contratual, e , em termos gerais quem tenha sido lesado ou possa vir a sê-lo em decorrência de um procedimento pré-contratual, bem como o ator popular ou publico têm legitimidade neste âmbito.

O artigo 77 A nº1, al. B), do CPTA confere legitimidade ao ator popular para intervir neste tipo de ações. Trata-se de uma norma que pode gerar problemas, pois, conferir legitimidade a entidades que não participam no procedimento pré-contratual ou que não sejam partes da relação contratual, desvirtua a relatividade que existe neste tipo de relações, abrindo a porta a certos abusos, nomeadamente, paralisar o andamento dos procedimentos pré-contratuais, por interesses divergentes da simples defesa da legalidade ou do interesse publico. Quanto ao ator popular, é-lhe conferida legitimidade, pois o Ministério Publico tem como finalidade a proteção da legalidade democrática, assim como, assegurar o interesse publico que deve ser igualmente assegurada nos procedimentos pré-contratuais e o seu produto, o respetivo contrato publico.

O artigo 77 A nº1, al C) do CPTA considera que uma entidade é prejudicada quando a mesma, reúne as condições legalmente exigidas para participar num determinado procedimento pré-contratual, e a Administração Pública, de forma ilegal, adota outro tipo de procedimento. O artigo 77 A nº1, al. D) do CPTA permite que um candidato, no âmbito de um procedimento pré-contratual, impugne um ou vários atos pré-contratuais com eficácia externa. O artigo 77 A, nº1, al E), CPTA, retrata situações em que existe a violação de princípios gerais da atividade administrativa. O artigo 77 A, nº1, al F) do CPTA, confere legitimidade em termos muito amplos a terceiros.

Na ação publica e na ação popular, o fim de defender a legalidade e o interesse público,- a lógica do contrato levaria ao afastamento e da ação pública e da ação popular, ou pelo menos desta última: Quanto ao Ministério Público, estando em causa um contrato com valor patrimonial elevado e se por isso possa lesar gravemente o interesse público, o Professor Vasco Pereira da Silva admite que a título excecional o Ministério Público goze de legitimidade, mas não uma legitimidade qualquer, pois isso levaria a considerar que este fosse uma parte normal do procedimento, quando na verdade, não o é. Quanto ao autor popular, não se percebe o fundamento da sua legitimidade. Se este não tem uma intervenção direta no procedimento, nem na negociação do contrato, não sendo parte no contrato, não deveria ter interesse nem na discussão do contrato nem no interesse em demandar. O professor entende que não faz sentido que o autor popular esteja entre as entidades dotadas de legitimidade. No domínio de um contrato bilateral, não faz sentido que o alguém que não faça parte daquela relação, goze de legitimidade. Por exemplo, o cidadão que resida em Vila real e que queira impugnar uma decisão interina ou um ato de gestão do Metropolitano de Lisboa quando este nunca utilizou os seus serviços. A solução tradicional até 2004, também pecava pelo seu âmbito restrito, mas o legislador para além do alargamento em relação a todos os afetados por aquela relação contratual, o legislador foi mais longe para quem atue para defesa do interesse público e pela defesa da legalidade. O facto de ser bilateral pode levar à negociação de claúsulas, em que umas sejam demasiado onerosas para o particular, mas que justificam em razão de outros benefícios, e vice versa. O contrato é, por sua natureza, um compromisso assumido entre duas partes, e não fará sentido que uma terceira parte, que não tem qualquer ligação com esse mesmo vínculo, venha a assumir esse mesmo compromisso, sob pena de se transformar esse negócio jurídico bilateral num negócio jurídico erga omnes. O legislador foi um pouco longe demais quando consagrou que o autor popular e a ação pública, que deveria ser subsidiária mas não nos mesmo termos que os demais intervenientes.





Bibliografia:

· ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2013

· ESTORNINHO, Maria João, Curso de Direito dos Contratos Públicos, 2012

· SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, 2009





João Pedro Capela, 140112056

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