1 (ACÓRDÃO) + 1 (RECURSO HIERÁRQUICO) + 1 (GNR) = π(ESSOA)? (2ª PARTE)

1 (ACÓRDÃO) + 1 (RECURSO HIERÁRQUICO) + 1 (GNR) = π(ESSOA)?

Para a maioria da doutrina, assim como para o TCA do Sul nesta ação, sim. De facto, Autores de prestígio como Mário Aroso de Almeida, Carlos Alberto Cadilha ou Mário Esteves de Oliveira, argumentaram que “a precedência obrigatória da impugnação administrativa mantém-se em relação aos casos especialmente previstos na lei pois o CPTA nada dispõe quanto às diversas disposições legais avulsas anteriores que preveem mecanismos de impugnação administrativa necessária.”
Segundo este segmento da doutrina, o legislador nunca terá agido para dificultar a defesa dos direitos e legítimos interesses dos interessados ou burocratizar o procedimento, mas para “garantir que uma revisão administrativa pudesse contribuir para uma maior fluência da acção administrativa e para não sobrecarregar os tribunais”. Ademais “quer o TC, quer o STA, têm mantido o entendimento da não inconstitucionalidade de tais normas, alegando que a eliminação do conceito de acto administrativo e executório e a sua substituição, no texto do artigo 268º, nº 4 da CRP, pelo “acto lesivo” não impede o legislador ordinário de estipular pressupostos processuais específicos para a impugnação contenciosa dos atos administrativos”.
Ora, não será absurdo dizer que tanto a doutrina maioritária como a mais alta jurisprudência caíram na esparrela, tendo sido, pelo menos durante largos anos, assombrados pelo velho fantasma do pecado original – que, ao invés de se sentar no divã, fê-los viver num sonho conscientemente sobressaltado, onde o mergulho libertador às profundezas subconsciente se afigurava como uma missão (quase) impossível.
Na verdade, estes argumentos, por mais atrativos que pareçam (mormente atendendo à coeva necessidade de agilização dos meios de tutela jurisdicionais), não procedem. E não procedem por várias ordens de razão (algumas, em resposta a argumentos contrários) – desde logo, porque os defensores de tais posições, apoiando-se no argumento da primeira parte do artigo 7º nº3 CC, olvidam-se de o ler na íntegra. Atentemos (sublinhado e negrito meu):

ARTIGO 7º
(Cessação da vigência da lei)
3. A lei geral não revoga a lei especial, exceto se outra for a intenção inequívoca do legislador.

O princípio generalidade-especialidade não opera, de facto, in extremis. Está sujeito à aferição da vontade inequívoca do legislador. Para lá dos argumentos positivos que notoriamente se extraem dos artigos 268º nº4 CRP e do artigo 51º nº1 CPTA, alguma doutrina, nomeadamente o Professor Vasco Pereira da Silva, tem denunciado a insustentabilidade da afirmação de tal relação de especialidade:
Em primeiro lugar, pela impossibilidade prática de compatibilizar o princípio geral de acesso à justiça independentemente de prévio recurso hierárquico com quaisquer regras especiais que supostamente manteriam essa exigência, mesmo que “por tabela”. Se o recurso se tornou facultativa e desnecessário, não deve poder ser exigido. Para quê exigir o inútil? Estaríamos perante um “recurso hierárquico necessário desnecessário” ou um “recurso hierárquico desnecessário necessário”, pois se a única razão de ser da necessidade do recurso hierárquico era, como se viu, a de permitir a impugnação do ato administrativo, essa ratio dilui-se perante a letra atual do artigo 51º nº1 CPTA. Assim sendo, todas normas legais anteriores à entrada em vigor do CPTA de 2004 padecem de ilegalidade pretérita superveniente, fruto do esgotamento das circunstâncias de direito que as justificavam (caducidade por falta de objeto): hoje, o sujeito tem o direito de impugnação imediata de qualquer decisão administrativa lesiva de um seu direito ou interesse juridicamente protegido, a qualquer momento do processo de decisão.
Em segundo lugar, que sentido fará dizer que o Novo CPTA revogou a regra geral do recurso contencioso necessário, mas não as regras especiais que o consagravam? Este argumento formalista afigura-se como rotundamente esquizofrénico, pois se as regras especiais confirmavam a antiga regra geral, então não eram regras especiais nenhumas, mas simples afloramentos sectoriais do princípio geral. Verdadeiras regras especiais, seriam normas que, antes da Reforma, dispensassem o recurso hierárquico necessário. Será que a revogação da regra geral da necessidade de recurso hierárquico não deverá arrastar consigo a caducidade de todas as normas que o consagravam avulsamente? Claro que sim.
Em terceiro lugar, revela-se injustificável, do ponto de vista jusconstitucional a criação de “relações especiais de poder” ou “privilégios de foro” no seio do Contencioso Administrativo, atendendo à amplitude do direito de acesso à justiça e às justificações que presidem às opções legislativas de recurso hierárquico necessário. Se já era errado justificar constitucionalmente o recurso hierárquico necessário antes da Reforma de 2004, então, depois da mesma, ainda se torna mais absurdo procurar explicar a opção legislativa, criando contenciosos privativos para categorias especiais de atos administrativos. Tal consagração revela-se inconstitucional por ferir o conteúdo essencial do direito fundamental de acesso à justiça administrativa e do princípio da tutela plena e efetiva dos particulares e ainda do princípio da igualdade de tratamento dos particulares.
Em quarto lugar, devemos concluir que o CPTA, concretizando o direito fundamental de acesso ao Contencioso Administrativo (268º nº4 CRP), vem estabelecer um princípio de promoção do acesso à justiça (7º CPTA), segundo o qual o mérito deve prevalecer sobre as formalidades, o que implica que se evitem diligências inúteis (8º nº2 CPTA) – e, como temos vindo a referir, não há nada mais inútil do que uma garantia graciosa prévia quando tal exigência foi excluídas, em definitivo, do leque de pressupostos processuais do processo administrativo.

Ora, afigura-se-nos como triste o facto do referido TCA do Sul no processo sub judice ter caído na esparrela do fantasma do pecado original, seguindo o (pouco) avisado entendimento do segmento dominante da doutrina nacional. Só por mero acaso é que, neste processo, o perfilamento deste entendimento não revestiu consequências desastrosas para o lesado. A tal estaria o Autor condenado, não fosse a existência, nesse mesmo Regulamento de Disciplina da GNR da norma do artigo 124º, que estabelece que “a interposição de recurso hierárquico não suspende a decisão recorrida”.

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