A indolência regulamentar da Administração no banco dos réus



A garantia constitucional que os administrados têm direito a uma tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, o que inclui o direito de impugnar as normas administrativas com eficácia externa lesiva desses seus direitos ou interesses (artigo 268.º, n.º 4 e 5, da Constituição), nunca estaria suficientemente realizada caso não estivesse previsto um mecanismo que assegurasse que a inércia regulamentar pudesse ser jurisdicionalmente controlada.
A ofensa desses direitos, com origem em normas emitidas pela Administração, pode resultar quer por via de ação quer através de omissão. Com efeito, o incumprimento do dever de regulamentar pode também ele ser causa de lesão dos direitos e interesses dos administrados.
Daí que a Reforma do Contencioso Administrativo não pudesse deixar de abordar a criação de um mecanismo que assegurasse um controlo jurisdicional da ilegalidade por omissão normativa, o que veio a suceder com a introdução no artigo 77.º do CPTA de uma ação administrativa especial que tem precisamente essa missão.
Note-se, para aqueles para quem qualquer nova função dos tribunais administrativos é sempre olhada como uma possível infração ao princípio da separação de poderes, por se traduzir numa intromissão indevida do poder judicial nas funções reservadas à Administração Pública, que era a inexistência deste mecanismo que, muitas vezes, facultava uma inadmissível invasão nas competências legislativas do poder executivo, ao permitir que este impedisse uma efetiva vigência das opções consagradas nos atos legislativos. Na verdade, dependendo muitas vezes a efetiva vigência das leis da existência de normas regulamentares de execução, a não emissão dessas normas acaba por se traduzir num inadmissível poder de veto exercido pela Administração.
Como era inevitável que sucedesse, o artigo 77.º do CPTA, por um lado, não deixou de ter como fonte inspiradora o controle de constitucionalidade por omissão legislativa já vigente no nosso sistema jurídco-constitucional, revelando, por outro lado, alguma timidez própria de quem se aventura por novos caminhos.
Dispõe este artigo o seguinte:
1 - O Ministério Público, as demais pessoas e entidades defensoras dos interesses referidos no n.º 2 do artigo 9.º, os presidentes de órgãos colegiais, em relação a normas omitidas pelos respetivos órgãos, e quem alegue um prejuízo diretamente resultante da situação de omissão podem pedir ao tribunal administrativo competente que aprecie e verifique a existência de situações de ilegalidade por omissão das normas cuja adoção, ao abrigo de disposições de direito administrativo, seja necessária para dar exequibilidade a atos legislativos carentes de regulamentação. 
2 - Quando verifique a existência de uma situação de ilegalidade por omissão, o tribunal condena a entidade competente à emissão do regulamento em falta, fixando prazo para que a omissão seja suprida.
Neste preceito, previu-se a existência de um processo especial, conferindo aos tribunais administrativos a possibilidade de verificar uma situação de ilegalidade por omissão de normas regulamentares.
Este processo especial pode ser desencadeado em todas as situações em que a lei impõe uma obrigação de regulamentação, assumindo aqui o poder regulamentar da Administração a feição do cumprimento de um dever indispensável à operatividade da lei e à realização de direitos subjetivos dos particulares. 
Isto aplica-se não só quando está em causa a emissão de regulamentos de execução que visam completar e desenvolver uma lei, como uma leitura apressada ou reveladora dos conhecidos traumas de infância do contencioso administrativo, do n.º 1, do referido artigo 77.º, do CPTA, poderia sugerir, mas também nos casos de necessidade de aprovação de regulamentos autónomos e independentes, uma vez que também relativamente a estes, não deixa de existir uma necessidade de intervenção regulamentar com origem em lei habilitante ou no ordenamento jurídico no seu todo. Se nestes regulamentos existe discricionariedade da Administração quanto ao seu conteúdo, quando a sua emissão corresponda a um dever legal, a inércia da Administração constitui um incumprimento desse dever, pelo que estamos também aqui perante uma ilegalidade por omissão que pode ser atacada através da propositura da ação especial prevista no artigo 77.º do CPTA. Uma coisa é a inexistência de um dever de conteúdo, outra é o dever de emitir normas regulamentares que regulem uma determinada realidade. E quando esse dever existe, apesar de não estar presente um comando contendo um programa normativo que possa suscitar concretas e definidas expetativas dos particulares, não deixa de existir o correspetivo direito destes a uma ação regulamentadora da administração que lhes permita orientar os seus comportamentos no domínio a regulamentar.
A causa de pedir nestas ações não é constituída apenas pela ausência de normação regulamentar numa situação em que existia o respetivo dever, mas também pela verificação de uma situação de mora na sua emissão. Tem que estar demonstrado que o tempo exigido ou exigível para a feitura daquelas normas se encontra ultrapassado. 
Quando a lei habilitante estabelece um prazo certo para a sua regulamentação é fácil a constatação da situação de mora, mas o mesmo já não sucede quando esse prazo não se encontra expressamente estabelecido na lei. Aí deve operar um juízo de razoabilidade que tenha em consideração a matéria do regulamento a emitir, verificando-se se o tempo já decorrido não se revela excessivo e ponderando-se se não existem quaisquer circunstâncias que justifiquem a dilação ocorrida. 
Alguns problemas colocarão os casos em que a lei tenha deixado ao critério da Administração o momento em que deveria ser realizada a sua regulamentação ou mesmo a decisão da necessidade da sua regulamentação. Nestas hipóteses, há que verificar, com especial cuidado, por um lado, se não existirão na lei diretrizes que, tacitamente, não deixam de vincular a Administração quanto aos critérios da escolha do momento ou da necessidade de emissão de normas, o que sempre permitirá o controle jurisdicional da observância desses critérios, devendo, por outro lado, fiscalizar-se o cumprimento pela lei habilitante da proibição contida no n.º 5, do artigo 112.º, da Constituição, no que toca à delegação do poder de suspensão dos seus preceitos.
Quando a ação é proposta por um particular tem que integrar ainda a causa de pedir a existência de um prejuízo ou risco de prejuízo resultante da omissão normativa. O administrado terá, pois, que alegar que da mora no cumprimento do dever regulamentar, resulta a afetação ou o perigo concreto de afetação de um seu direito subjetivo ou interesse de facto, de natureza pessoal ou patrimonial. 
Conforme resulta do disposto no n.º 1, do artigo 77.º, do CPTA, têm legitimidade ativa neste tipo de ações especiais, o Ministério Público, as associações e fundações defensoras de interesses no domínio da matéria a regulamentar, os presidentes de órgãos colegiais, em relação a normas omitidas pelos respetivos órgãos, e qualquer pessoa que alegue um prejuízo diretamente resultante da situação de omissão.
Tem legitimidade passiva a autoridade com competência para emitir as normas em falta.
Estas ações, em regra, devem ser conhecidas pelos tribunais administrativos de círculo, mas quando a autoridade em falta é uma das mencionadas no artigo 24.º, n.º 1, a), do ETAF, o processo deve ser instaurado no STA.
Não há prazos de caducidade para o exercício deste direito.
A sentença a proferir, no caso de procedência da ação, deve condenar a entidade competente à emissão do regulamento em falta, fixando prazo para que a omissão seja suprida (artigo 77.º, n.º 2, do CPTA), tendo como pressuposto o incumprimento temporário do dever de emitir a normação em falta. 
Como resulta da redação do referido n.º 2, do artigo 77.º, estamos perante uma ação condenatória e não perante uma ação de simples apreciação.
Na fixação do prazo deve o juiz ter em consideração o prazo fixado na lei nos casos de este existisse, a dimensão da mora ocorrida, o grau de dificuldade da matéria a regulamentar e todas as demais circunstâncias que possam relevar na fixação de um tempo razoável para o cumprimento do dever de regulamentar. 
O desrespeito deste prazo constitui um ato de desobediência em relação à sentença, o que permite ao demandante instaurar uma ação executiva, com fixação de um prazo limite (artigo 164.º, n.º 4, d), do CPTA) e a imposição de uma sanção pecuniária compulsória aos titulares dos órgãos administrativos responsáveis pelo incumprimento, nos termos dos artigos 168.º e 169.º do CPTA, caso essa sanção já não tenha logo sido fixada na sentença que procedeu à condenação na emissão das normas omitidas.
Será que esta sanção pecuniária consegue, minimamente, satisfazer a garantia dos administrados a uma tutela jurisdicional efetiva nestas situações de omissão de regulamentação ?
Se é verdade que ela representa um forte argumento compulsório, sobretudo quando tem uma expressão quantitativa considerável, não se vê razões para que, de modo semelhante ao que sucede com o ato devido, não se tenha consagrado a possibilidade do tribunal condenar a administração na emissão do regulamento devido.
Na verdade, pelo menos nas situações em que o conteúdo regulamentar se encontra pré-determinado pelo legislador, não se descortinam quaisquer razões para que a condenação também não abranja os termos em que deve ser efetuada a regulamentação em falta.
Também aqui, como noutras situações, se verifica que o direito não é o local ideal para a existência de revoluções, resultando as suas evoluções de reformas paulatinas e de golpes de estado palacianos, o que, nos tempos atuais, em que a história dos homens se desenrola a alta velocidade, tem como consequência que o direito passou a ser uma área em permanente desassossego. 
Daí que o futuro breve não deixará de nos trazer mais esta alteração.


Pedro Mariano 140114033












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