A FIGURA DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO PRÉ-REFORMA: INCONSTITUCIONALMENTE JUIZ

­A propósito da análise da norma do número 3 do artigo 95º do CPTA, vimos que na doutrina portuguesa as opiniões se têm dividido quanto ao seu significado. Em particular, vimos que o Professor Mário Aroso de Almeida, sempre teve uma visão mais ampla do objecto do processo, pelo que tende a considerar que o juiz, no âmbito dos respectivos poderes, pode carrear factos novos para o processo.
Tal orientação, entendida de forma tão ampla, gera uma objecção que é imediata: se isto é, de facto, assim, então qual é a natureza do tribunal? O entendimento em questão levaria a que o tribunal deixasse de ser uma entidade neutra e independente, transformando-se numa parte, isto é, num sujeito processual, numa realidade parcial, dependente e activa, o que não só contraria toda a lógica do entendimento do juiz no sistema jurídico português, como a própria Constituição e a lógica do poder judicial.
As críticas e objecções que se levantaram ao entendimento em causa, levaram a que o Professor Mário Aroso de Almeia tenha moderado a sua opinião. Já não formula as coisas nos mesmos termos, mas continua, em todo o caso, a defender que ao juiz cabe um papel importante na determinação do objecto do processo. Para o efeito, alega a seu favor a posição de Teixeira de Sousa, um processualista que, no quadro de uma comparação entre o Processo Administrativo e o Processo Civil, escreveu outrora que “não havia problema em o juiz procurar factos novos, porque se estaria a colocar ao mesmo nível que o Ministério Público”. Ora, é aqui que falha grandiosamente a linha de raciocínio do Professor Mário Aroso de Almeida, que se deixou ficar pela lógica do Processo Civil e do Contencioso Administrativo do século passado. Isto porque, desde há muito que aquilo que distingue o juiz do Ministério Público é o facto de o primeiro decidir e o segundo ser uma parte em sentido processual.

Não pretendo discutir aqui a interpretação correcta do número 3 do artigo 95º do CPTA, a qual já expus em publicações (posts) anteriores. Onde me pretendo focar é, antes, na posição do Ministério Público anterior à Reforma de 2005. O que sucedia, à data, era que o Ministério Público era um verdadeiro juiz, na medida em que tinha participação activa no momento da emissão da sentença. Foi precisamente esta a realidade que levou à formulação, por parte do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (doravante, TEDH), do célebre acórdão “Lobo Machado v. Portugal”, de 20 de Fevereiro de 19961 2, o qual condenou o papel de juiz que era desempenhado pelo Ministério Público.

Quanto às circunstâncias do caso, Pedro Lobo Machado, cidadão português reformado, intentou uma acção contra a Petrogal, para a qual tinha trabalhado, e que na altura era uma sociedade anónima da qual o Estado português era o accionista maioritário, visando obter o reconhecimento da categoria laboral de “Director Geral”, ao invés da de “Director” que lhe fora atribuída na altura pelo empregador, a qual lhe conferia uma pensão de reforma mais elevada e também a retribuição mais elevada, de acordo com o acordo colectivo de trabalho vigente no sector. O Tribunal do Trabalho de Lisboa julgou improcedente o pedido, decisão confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, pelo que o caso chegou ao Supremo Tribunal de Justiça por via de recurso.
Naturalmente, as partes trocaram articulados, após o qual um procurador do Ministério Público emitiu um parecer, pronunciando-se no sentido da rejeição do recurso. Pouco depois, o STJ reuniu-se em privado para decidir do recurso. Na deliberação estiveram presentes três juízes, um escrivão e o referido procurador do Ministério Público. As partes não tinham sido convocadas. Em resultado da deliberação, o STJ decidiu pela rejeição do recurso, tendo sido o requerido notificado da mesma.
Assim, o TEDH afirmou a necessidade de o Estado português alterar a legislação do Contencioso, quer civil, penal, ou administrativo, de modo a acabar de uma vez por todas com a referida prática e deixar claro, sem qualquer margem para dúvidas, que o Ministério Público é nada mais nada menos que uma parte, não podendo em caso algum ser equiparado ao juiz.
                  Foi na sequência da decisão emitida pelo STJ que Pedro Lobo Machado apresentou uma queixa junto da Comissão dos Direitos do Homem, que em seguida remeteu o processo o TEDH. Com base no parágrafo primeiro do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Pedro Lobo Machado alegou, entre outras, a violação do seu direito a um processo equitativo diante de um tribunal independente e imparcial e do princípio da igualdade de armas, em resultado do papel atribuído ao Ministério Público no processo junto do STJ.
                  Dispõe o parágrafo primeiro do artigo 6º da CEDH que “qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa[mente], (...) por um tribunal independente e imparcial, (...) o qual decidirá (...) sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil (....)3.
                  Pedro Lobo Machado alegou, desde logo, que antes de o STJ emitir o julgamento não lhe fora possível obter uma cópia do parecer emitido pelo procurador do Ministério Público e, consequentemente, responder ao mesmo. Ao que acresce o facto de o departamento do Ministério Público ter estado representado nas deliberações efectuadas pelo STJ, apesar de ter anteriormente subscrito os argumentos da Petrogal. Ademais, que tinha o direito de duvidar da imparcialidade do departamento do Ministério Público, enquanto representante do Estado nos litígios de natureza privada respeitantes a quantias pecuniárias, porque tinha interposto uma acção contra uma empresa pública.
              A seu ver, nada justificava a presença do procurador do Ministério Pública nas deliberações, porquanto o seu papel não fora o de aconselhar o tribunal, tão-pouco a sua presença fora necessária para velar pelo interesse público, na medida em que este tomara o lado da empregadora Petrogal.
                  O TEDH, tomando em consideração tudo isto, firmou a conhecida jurisprudência, segundo a qual “o direito a um processo equitativo inclui o direito a um processo contraditório [que, por sua vez], implica, em princípio, a faculdade para as partes de um processo, penal ou civil, de tomar conhecimento e de discutir, todo o elemento ou observação apresentado ao juiz, mesmo por um magistrado independente, tendo em vista influenciar a decisão”.
No caso concreto, o direito ao contraditório fora violado devido à impossibilidade de Lobo Machado tomar conhecimento e de responder ao parecer do procurador-geral adjunto, parecer esse que defendera a manutenção da decisão recorrida, e ainda devido à presença do mesmo no julgamento, presença essa que lhe permitira pronunciar-se de novo no mesmo sentido, sem recear oposição. A intervenção do Ministério Público não fora neutra; antes permitiu que este agisse como “adversário objectivo do recorrente” 8 indo contra o princípio da igualdade de armas e ao direito ao contraditório na medida em que não oferecia possibilidade de resposta do recorrente. Em resultado disto, também a aparência de imparcialidade do STJ fora posta em causa.
Tudo somado e pesado, concluiu o TEDH pela efectiva violação do parágrafo primeiro do artigo 6º, condenando o Estado português por o Ministério Público ter um papel activo no momento da emissão da decisão.
A jurisprudência do caso Lobo Machado foi posteriormente repetida em diversos outros acórdãos, tais como os acórdãos Nideröst-Huber 4 e Mantovanelli 5, ambos de 1997.

A nível nacional, também o Tribunal Constitucional se pronunciou sobre a questão no acórdão 345/99 6. Em causa estava a norma constante do 15º do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho – que era à data a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais (LPTA) –, que o recorrente entendia violar o disposto no número 2 do artigo 202º, no artigo 203º e o disposto nos números 1 e 2 do artigo 209º da Constituição. Dispunha ela que “no Supremo Tribunal Administrativo e no Tribunal Central Administrativo o representante do Ministério Público a que, no processo, esteja confiada a defesa da legalidade assiste às sessões de julgamento e é ouvido na discussão”.
Ora, o Tribunal Constitucional discordou que o artigo 15º pudesse violar os números 1 e 2 do artigo 219º da Constituição, sublinhando que as competências do Ministério Público lhe eram atribuídas tendo em vista a defesa da legalidade, que é precisamente a tarefa prescrita constitucionalmente. Também assim quanto ao número dois do artigo 202º e quanto ao artigo 203º.
Diferentemente, o Tribunal Constitucional optou por focar a sua atenção na questão de saber se a norma do artigo 15º violava o direito a um processo equitativo, previsto no número 4 do artigo 20º da Constituição – que transpôs, aquando da revisão constitucional, o parágrafo primeiro do artigo 6º da CEDH –, pois embora tal violação não tivesse sido alegada pelo recorrente, o “Tribunal Constitucional pode julgar inconstitucional ou ilegal (...) com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação foi invocada”, nos termos do artigo 70º-C da Lei do Tribunal Constitucional 7 (hoje, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional).
Baseando-se na jurisprudência firmada no caso Lobo Machado, e com o claro intuito de acompanhar a evolução europeia no tocante aos direitos fundamentais, o Tribunal Constitucional veio julgar inconstitucional o referido artigo 15º por violação do número 4 do artigo 20º da Constituição, que impõe o respeito pelo carácter equitativo do processo e, em especial, pelo princípio do contraditório.
Isto porque entendeu que a presença do representante do Ministério Público nas sessões de julgamento, e consequente possibilidade de ser ouvido nas deliberações era violadora do princípio do contraditório, na medida em que as partes não podiam tomar conhecimento da intervenção do Ministério Público, nem pronunciar-se sobre a mesma, levando a que este pudesse, por si só, influenciar a decisão do tribunal em sentido desfavorável. Acrescentando ainda que “mesmo quando o Ministério Público nada diga na sessão de julgamento, basta a possibilidade de dizer sem controlo do facto pela parte para tornar a intervenção inadmissível, em face das exigências de transparência ligadas ao correcto entendimento do princípio do contraditório, implicado pelo número 4 do artigo 20º da Constituição”.

Com a reforma, o Ministério Público perdeu os poderes que o colocavam numa posição equivalente à do juiz, embora tivessem sido mantidos muitos outros poderes, transformando-o numa parte como todas as outras.
Hoje sabemos que o Ministério Público goza do direito de acção e do direito de continuar os processos iniciados pelos particulares que desejar prosseguir. Fora disto, não tem poderes para intervir na elaboração da sentença.
O Ministério Público pode até elaborar um parecer, mas não há qualquer dúvida de que não participa no momento da decisão, porquanto esta realidade que existiu no quadro do direito português, e que foi fortemente criticada pelo TEDH, é algo que esta reforma fez desaparecer.
Podemos concluir, assim, que Teixeira de Sousa, quando fez o reparo acima descrito tinha ainda em mente alguma confusão que pudesse existir entre o Ministério Público e o juiz, porquanto, em rigor, não faz qualquer sentido confundir um com o outro. O juiz é uma entidade imparcial que decide em função daquilo que lhe foi trazido, enquanto que o Ministério Público se encontra numa posição em que tem alguns poderes que correspondem à posição das partes – e nunca à do juiz.


Mª Madalena Salazar Leite,
140114093


Fontes e Bibliografia:








8 Recueil cit. 1996 – I, p. 216.

Apontamentos das aulas
O Contencioso Administrativo no Divã da Piscanálise – Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, Vasco Pereira da Silva (2016)


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