ÂMBITO DE APLICAÇÃO DA JUSTIÇA ADMINISTRATIVA PARTE 1



O âmbito da jurisdição do contencioso administrativo era tradicionalmente uma realidade limitada. Começou por ser o contencioso do ato administrativo. Era o ato que era objeto de anulação no quadro processual.  Depois passou a ser entendido como o contencioso do poder: alargaram-se as vias da forma de atuação do ato administrativo para as vias da forma de atuação do regulamento administrativo. Contudo, continuou a deixar-se de fora o universo das relações administrativas.

A Administração Prestadora (e depois da Administração Estrutural) demarcou-se pela multiplicidade das formas de atuação e pela importância das formas de atuação não autoritárias. Se a administração presta bens e serviços, atua como os particulares, usando meios técnicos para satisfação de necessidades coletivas. Há uma tomada de atenção para a necessidade de abrir o contencioso, não apenas para as chamadas relações de poder, não apenas para os contratos e, eventualmente, para a responsabilidade civil, mas a necessidade de abrir a todas as formas de atuação. 

O particular está envolvido numa multiplicidade de relações estabelecidas com a Administração e essas relações geram litígios, conflitos de interesses, que devem ser chamados a juízo. Vejamos os seguintes exemplos:

  •  O do particular que pretende o pagamento de uma bolsa de estudo;                                          
 O particular já a recebeu, mas acontece que esta não foi paga. Não pretende, assim, impugnar o ato administrativo. O que pretende é a prática de atos materiais necessários ao pagamento.

  • O do particular que tem direito a uma pensão de sobrevivência, quando esta deixou de ser paga; Não quer impugnar o ato que lhe atribui a pensão de sobrevivência, mas, sim, assegurar que o pagamento continue.

Portanto, é necessário que o contencioso administrativo vá além da lógica do poder, dos meios de atuação tradicionais, e que chegue a todo o universo da função administrativa.

A Constituição da República Portuguesa estabelece essa via, essa dimensão ampla do contencioso administrativo. A CRP vem dizer nos artigos 209º e seg. e no próprio art. 212º, nº3 que o contencioso tem como objeto as relações jurídicas administrativas.

O artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais adotou uma lógica ampla de limitação do contencioso administrativo. Veio consagrar, de forma correta, aquilo que são as grandes opções constitucionais neste domínio e introduzir uma grande amplitude no âmbito da jurisdição administrativa. De salientar que esta norma foi revista em 2015, mantendo a amplitude originária mesmo que a formulação de 2004 fosse, no entendimento do Prof. Vasco Pereira da Silva, mais adequada do que a formulação atual. 



Análise do artigo 4º, nº1:


a) “Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no
âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais”


Temos dois aspetos novos que resultam da revolução “copernicana” constitucional. Por
um lado, a tutela dos direitos (qualquer direito dos particulares, no quadro de uma
relação jurídica administrativa, pode ser conhecido pelo contencioso). É um critério novo,
que não tem a ver com o ato administrativo, com o poder administrativo ou com as
formas de atuação, mas sim com direitos dos particulares. Inclui, assim, no âmbito do
contencioso administrativo, todas as relações que caibam no âmbito do exercício da
função administrativa.

Para além disso, também surge aqui a outra referência constitucional (ampla) às
relações jurídicas administrativas e fiscais (art.212ºnº3 CRP). Na opinião do Prof.
Vasco Pereira da Silva esta norma teria sido suficiente para caracterizar o âmbito do
contencioso, se tivesse sido formulada em termos genéricos e não em termos do caso.
Mas o legislador preferiu arranjar exemplos sucessivos, permitindo que as relações
fossem qualificadas, simultaneamente, por várias alíneas.

b) “Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da
Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal”


Está em causa a lógica tradicional, ou seja, a fiscalização da legalidade de atos e
normas. A verdade é que, ao fiscalizar-se a legalidade de atos e normas, estão-se a
tutelar direitos, direitos esses que corresponde à preterição da legalidade no caso
concreto, conduzindo à lesão das posições subjetivas dos particulares.

Se só existisse esta norma, tal significaria que o contencioso administrativo estava
limitado. Mas, como esta norma se associa às outras, isso é sinal de abertura. Nessa
perspetiva, os conflitos jurídicos relativos a atos e regulamentos podem entrar pela
“porta” da alínea a) ou pela da alínea b), bem como podem entrar pelas duas em
simultâneo.

c) “Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado
ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública”


Critério que assenta na natureza dos órgãos. Tem a ver com a sua atuação de acordo
com as regras de legalidade e, dessa perspetiva, é um critério que assenta na lógica
tradicional. Só que os órgãos que aparecem aqui definidos implicam o alargamento do
contencioso administrativo, porque se tratam de entidades que não estão integradas na
Administração Pública (em sentido subjetivo). Ex: Presidente da República (órgão político
que desempenha funções materialmente administrativas); empresas de capitais públicos
ou mistos ou outras formas de participação do Estado na atividade económica, social e
cultural através de formas não públicas.

d) “Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer
entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos”


O critério já não assenta no órgão, mas na forma de atuação (independentemente da
natureza da entidade em causa). Exemplo: hospitais privados; escolas e universidades
privadas; empresa que construi as pontes sobre o Tejo; empresas que gerem as
autoestradas e asseguram a sua manutenção.

e) “Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos
administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre
contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicastes


Está em causa a atuação contratual administração, que está definida em termos
amplos (“quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação
pública”). Por influência do direito comunitário, a legislação da contratação pública inclui
todos os contratos relativos ao exercício da função administrativa. Os contratos
administrativos são, hoje, uma subespécie dentro dos contratos públicos.

Na formulação de 2004 não se falava em “contratos administrativos”, o que traduzia uma
lógica mais ampla e de acordo com a diretivas europeias. Na União Europeia as regras
são ditadas para todo o universo da função administrativa independentemente de quem
realiza essa tarefa. Os critérios distintivos são em razão da atividade ou em razão do tipo
de contrato. No entanto, esta última diferenciação não está relacionada com a
esquizofrenia que contrapunha os contratos públicos aos contratos subordinados ao
direito privado e, portanto, regulados pelos tribunais comuns. Com a nova lógica das
diretivas, procedeu-se à superação destes critérios limitados.

f) “Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por
danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do
disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo*”


*Nº4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais
pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso

Nota: esta ideia já estava prevista na redação de 2004; entre 2004 e 2007 ainda havia
falta de lei que regulasse este aspeto; com a nova regulação de 2007 resolveu-se esta
questão.

Em causa está o alargamento do contencioso administrativo a todas as funções do
Estado em matéria de responsabilidade civil.

No entanto, é estabelecida uma limitação: está excluída do âmbito jurisdição
administrativa a apreciação de ações de responsabilidade por erro judiciário. O que está
excluído da jurisdição administrativa é a determinação do erro judiciário, que deve ser
apreciado pelo tribunal da respetiva jurisdição. Se, depois dessa apreciação resultar
responsabilidade civil, esta deverá ser conhecida pelos tribunais administrativos. No
quadro da responsabilidade civil, para que o sistema funcione, são necessárias “matérias
conectadas”, ou seja, ligadas de uma forma especial ao que está a ser julgado. Dividir as
coisas em duas metades gera a necessidade de duplicação de meios processuais e de
sentenças, o que faz pouco sentido.

Que razões, pensando, por exemplo, na lógica civilista, podem ter conduzido à subtração
destas matérias do âmbito do contencioso administrativo?

Pode invocar-se a especificidade do erro em cada jurisdição. Foi para que não se pudesse
dizer que a justiça administrativa se ia intrometer nas jurisdições autónomas que se
entendeu excluir estas matérias do âmbito do contencioso administrativo.

No entendimento do Prof. Vasco Pereira da Silva, esta lógica da separação das jurisdições
em termos absolutos e de que é preciso esperar, primeiro, pela decisão no quadro da
jurisdição competente para depois se proceder à análise da questão da responsabilidade
não só introduz morosidade e dificuldade de relacionamento entre as instituições, como
pode conduzir a situações de negação de justiça. Por outro lado, esta medida levou a que
as questões da responsabilidade administrativa, em si mesmas perdessem importância
no contencioso administrativo. O juiz passou a estar preocupado com todas as questões
de responsabilidade e, por causa disso, deixou de atentar, especialmente, nos problemas
da responsabilidade administrativa.

g) “Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes,
trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso”


Em causa está o alargamento do contencioso administrativo, em matéria de
responsabilidade civil, aos titulares dos órgãos, funcionários, agentes e trabalhadores
que exerçam a função administrativa.

h) “Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime
específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público”


Em causa está o alargamento do contencioso administrativo, em matéria de
responsabilidade civil, aos órgãos que, a título individual, atuem no âmbito de uma
realidade estadual.

i) “Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime”


Alargamento à ação administrativa em via de facto. Diz respeitos às situações em que
a Administração atua independentemente do título que a permite atuar (título
habilitador). Ex: quando a administração poderia declarar utilidade pública de um
terreno, mas apenas o ocupa; quando a administração pede algo de alguém sem ter
praticado um prévio ato administrativo.



continua... 

Comentários

Mensagens populares